Por Flávia Sant’anna Benites

O ano de 2022 se inicia e com ele a contagem regressiva para a comemoração do 200° aniversário da independência do país, proclamada em 1822 por dom Pedro I. A data, que contará com restauros de monumentos nacionais diversos e a reabertura do Museu do Ipiranga, na cidade de São Paulo, reacende uma importante discussão acerca da preservação do patrimônio histórico brasileiro, dando ainda enfoque a um instrumento jurídico pouco estudado e compreendido: o tombamento.

Instituído pelo Decreto-Lei n° 25 de 1937, elaborado pelo ministro Gustavo Capanema e sancionado por Getúlio Vargas, o tombamento visa à proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, designando este como “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” [1]. Mas o que é o tombamento em si? Em primeiro plano, um instituto de Direito Público, consoante pormenoriza o professor José Cretella Júnior:

“O instituto do tombamento, embora tenha estreitas relações com o direito civil, é matéria de direito administrativo, sendo informado por princípios publicísticos. E por quê? Porque há dois tipos de limitações ou restrições do direito de propriedade, as de direito privado, que tem por fim a compatibilidade do direito de cada proprietário com os direitos e interesses de outros sujeitos e, sobretudo, com os outros proprietários, as de direito público, que tem por objetivo a compatibilidade do direito do proprietário com os direitos subjetivos públicos do Estado” [2].

Inegavelmente o tombamento instrumentaliza um dos direitos fundamentais mais esquecidos previstos pela Constituição da República de 1988, o acesso à cultura. Destaca o caput do artigo 215 da Magna Carta o dever do Estado de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional. Tão logo se identifica que, ao contrário do que pode ser o entendimento popular, a finalidade de tombar um bem não é desvalorizá-lo, mas, sim, utilizá-lo para alcançar o interesse público, qual seja a preservação da cultura nacional:

“O valor cultural que o bem porta é a causa, o motivo do tombamento, e a sua conservação é a consequência que se quer alcançar com a tutela; o efeito da imposição desse interesse público, sua finalidade. Se há o reconhecimento desse atributo cultural no bem material, impõe-se a tutela desse valor na coisa pelo poder público, e o tombamento é instrumento jurídico por excelência para proteger e conservar o interesse público cultural materializado em coisas móveis e imóveis” [3].

O reconhecimento do valor histórico, artístico ou cultural de um bem, entretanto, não segue critérios objetivos, motivo pelo qual o tombamento é entendido como ato discricionário. Destaca-se que a discricionariedade não deve ser entendida como a ausência da lei, mas, sim, uma autorização nela constante para situações cuja mera aplicação legal seja insuficiente, sendo necessário recorrer a um esforço mais aprofundado. Cabe, assim, a cada órgão competente — tendo como exemplo na esfera federal o IPHAN — a elaboração de estudos acerca do impacto cultural encontrado naquele bem, além da análise de sua conservação, história e até mesmo o quanto de sua estrutura original resiste. Em que pese nos processos de tombamento exista a necessidade de um laudo conclusivo emitido por corpo técnico, insta-se que o instituto integra a discricionariedade em seu sentido tradicional, sendo sem dúvidas uma decisão política — tomada doravante a avaliação do interesse público — a partir do momento em que o laudo pode simplesmente ser descartado pelo conselho consultivo de cada órgão, instância que aprova os tombamentos.

A qual espécie de ato administrativo o tombamento pertence, entretanto, permanece algo contraditório. Entendido por parte da doutrina como servidão administrativa, considerando que, segundo Celso Antônio de Mello, “sempre que seja necessário um ato específico da Administração, criando uma situação nova, atingiu-se o próprio direito,e pois, é a hipótese de servidão” [4], o instrumento também pode ser pensado como espécie sui generis, ou seja, de seu próprio gênero. A dificuldade em enquadrar o instituto reside no pouco entendimento que se tem sobre ele, bem como seu caráter quase autoritário, levando em consideração o regime de exceção sob o qual foi criado, não sofrendo mudanças significativas até o presente.

Por fim, aponta-se a posição de que o tombamento poderia ser tratado como espécie de desapropriação nos casos em que há impedimento ao exercício do domínio. Embora igualmente respeitável, a tese é combatida, sobretudo pela própria Administração Pública, que se lastreia no fato de que na desapropriação há a transferência da titularidade do bem, evento que não ocorre no tombamento. Ademais, são inúmeros os casos em que proprietários de bens tombados recorrem ao Poder Judiciário pleiteando a desapropriação daqueles, o que evidência por si só não tratar-se da mesma figura jurídica, em que pese ser possível o tombamento ser precedido pela desapropriação.

Figurando como um caso emblemático, pouco se estuda um instrumento tão vasto e importante. As dificuldades enfrentadas pelo tombamento ao longo de seus 85 anos de existência são as mais diversas e merecem análise aprofundada, vez que figuram uma séria aversão social à intervenção judicial desmesurada, aos cortes orçamentários e a mudanças internas dentro dos órgãos competentes.

[1] Artigo 1°, Decreto-Lei n° 25 de 1937.

[2] José Cretella Júnior, Dicionário de Direito Administrativo, cit.pp. 512, Jose Bushatsky. São Paulo, 1972.

[3] RABELLO, Sonia. O Estado na preservação de bens culturais: o tombamento. IPHAN, 2009, p. 53.

[4] Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de Direito Administrativo, São Paulo, Editora RT, 7° tiragem, 1987, p.18.