Por Alex Hatanaka e Flavia Regina de Souza Oliveira

A atual crise econômica causada pela pandemia ainda não se fez sentir em toda sua extensão no plano concreto, de modo que a expectativa corrente, não muito alvissareira, é a de que muitas empresas e agentes econômicos em dificuldades financeiras acabarão tendo de avaliar o uso dos mecanismos previstos na Lei nº 11.101/2005, Lei de Recuperação e Falência (LRF), para buscar seu soerguimento, a saber, a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a mediação antecedente com credores.

Não é diversa a situação de muitas associações e fundações que, embora não tenham a finalidade de auferir lucros, desempenham atividade econômica relevante, como mantenedoras de instituições de ensino, hospitais, instituições de longa permanência e entidades desportivas. Muitas delas tiveram suas fontes de receitas reduzidas pela conjuntura econômica. Nesse contexto, é relevante ressaltar que decisões judiciais recentes trouxeram à baila, mais uma vez, a polêmica em torno da possibilidade de associações sem fins lucrativos e fundações públicas se valerem dos mecanismos previstos na LRF [1].

O artigo 1º da LRF anuncia, com clareza, que seu escopo se restringe ao empresário e sociedade empresária” [2]. O pressuposto para essa delimitação é justamente a existência de um regime dicotômico, pelo qual empresários ou empresas são inscritos perante os competentes registros públicos de empresas mercantis, ou juntas comerciais, e se submetem ao regime da LRF, ao passo que outras pessoas jurídicas de Direito Privado, como as associações ou fundações, são constituídas em cartórios de registro civil e se submetem ao regime de liquidação de insolvência civil, sem a possibilidade, a priori, do uso de mecanismos de recuperação.

Não obstante a redação clara, testemunhou-se, em casos práticos, uma relativização do comando legal e a adoção de uma interpretação finalística, calcada, em essência, nos princípios da preservação da empresa e de sua função social, de sorte a admitir que tais instituições sem fins lucrativos fossem autorizadas a manejar a recuperação judicial, equiparando-as a “empresas”, embora formalmente não fossem.

O conceito de empresa no Direito brasileiro e instituições sem fins lucrativos
O artigo 966 do Código Civil define como empresário aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços”, enquanto será empresária, nos termos do artigo 982, a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (artigo 967)”.

O cerne da discussão diz respeito ao fato de que as associações e fundações se organizam para fins não econômicos”, ou seja, diferentemente de empresas, não buscam lucros e retorno a seus associados ou instituidores. Da escolha da forma jurídica de sua constituição decorre toda uma série de consequências, entre as quais certas imunidades e benefícios significativos de natureza fiscal.

Com base nisso, há entendimento de que tais pessoas jurídicas, que não são consideradas empresárias, não podem se submeter à recuperação judicial ou extrajudicial ou, mesmo, ter a sua falência decretada [3]. Estão, assim, fora do escopo circunscrito, de forma clara, pelo artigo 1º da LRF.

Por outro lado, não há dúvida de que certas associações e fundações assumem um relevo social marcante, não só pelo cumprimento de seu objeto, com o desempenho de atividades de importância social, mas também por criar empregos, pagar tributos e, em última análise, movimentar a economia. Em outras palavras, elas têm impacto econômico e social e exercem, de forma habitual e profissional, atividades que se aproximam de funções de uma empresa típica, mediante a coordenação de fatores de produção para a prestação de serviços ou de produtos.

Nessa linha de raciocínio, há opiniões doutrinárias que convergem para a possibilidade da sujeição de associações e fundações ao sistema concursal da LRF [4], com base na equiparação a empresas, autorizada com base nos princípios estruturantes da LRF de preservação da empresa e da função social. Alguns argumentam, inclusive, que as instituições sem fins lucrativos não foram expressamente excluídas do regime de aplicação da LRF no artigo 2º, o que criaria margem para discussão. Não há clareza em tais opiniões se os autores entendem que o insucesso de eventual recuperação judicial sujeitaria a associação ou fundação ao regime falimentar com todas as consequências previstas na LRF, incluindo, entre tantas outras, as disposições sobre ineficácia e revogação de atos anteriores ao decreto de quebra e crimes falimentares.

O debate doutrinário, como se vê, é claramente acirrado, dada a tensão entre a redação inequívoca da legislação resultado da dicotomia entes civis e empresas e, de outro lado, a aplicação dos princípios gerais da LRF de preservação da empresa e função social. Essa última interpretação se fortalece em situações concretas em que há justificativa social, muitas vezes levando a interpretações ampliativas e, em alguns casos, até contra legem [5]. No Poder Judiciário a situação também não é pacífica, embora, como se passa a ver, observa-se uma prevalência da posição de que seria possível, em tese, outorgar às associações sem fins lucrativos o favor legal da recuperação judicial.

Aelbra, Universidade Cândido Mendes e Hospital Evangélico da Bahia
Em 6 de maio de 2019, a Aelbra Educação Superior — Graduação e Pós-Graduação S.A. (Aelbra), uma das maiores instituições de ensino do Rio Grande do Sul, apresentou pedido de recuperação judicial perante a 4ª Câmara Cível de Canoas (Processo nº 5000461-37.2019.8.21.0008).

A Aelbra, vale ressaltar, era constituída na forma de uma associação desde 1972 até as vésperas do pedido de recuperação judicial. Apenas para que fosse deferida a sua recuperação judicial, a instituição de ensino alterou sua forma organizacional para uma sociedade anônima de capital fechado. Em razão disso, o juízo de primeiro grau indeferiu o pedido de recuperação judicial, uma vez que a Aelbra não exercia suas atividades regularmente há mais de dois anos na forma de uma sociedade empresária.

Contudo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reverteu tal decisão, determinando o processamento da recuperação judicial, visando à preservação da atividade econômica, a manutenção de milhares de empregos e a proteção dos direitos de estudantes e credores.

Em um segundo caso recente, em 11 de maio de 2020, em razão da pandemia da Covid-19, a Associação Sociedade Brasileira de Instrução (ASBI), instituição privada de ensino superior do país, mantenedora da Universidade Cândido Mendes, e o Instituto Cândido Mendes, instituição que auxilia as organizações públicas, empresariais e do terceiro setor, ambas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos, ingressaram com pedido de recuperação judicial.

Com o intuito de que sua recuperação judicial fosse deferida, a Cândido Mendes reforçou, em sua petição inicial, que o conceito de empresa é um fenômeno econômico, que deve ser comprovado com elementos fáticos e não apenas a partir de uma ou outra roupagem jurídica”. Ainda, a associação civil ressaltou que a preservação da atividade de empresa”, prevista na LRF, se sobrepõe à necessidade de preservação da “forma de constituição do seu agente propriamente dito” [6].

Com base nos argumentos trazidos pela Cândido Mendes, a 5ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro deferiu o processamento da recuperação judicial da referida associação, fundamentando-se na inconteste relevância social” da universidade, somada ao fato de que a Cândido Mendes exerce atividade econômica, nos termos do artigo 966 do Código Civil” [7].

Contra essa decisão, o Ministério Público interpôs agravo de instrumento, alegando que uma associação sem fins lucrativos, mesmo que dedicada a atividade econômica, não poderia reclamar proteção sob uma recuperação judicial. Isso porque, caso se permita que entidades sem fins lucrativos sejam consideradas empresas”, estar-se-ia admitindo um duplo regime jurídico” para tais entidades: um regime jurídico empresarial, para concessão da recuperação judicial; e um regime jurídico não empresarial, para fins de concessão de benefícios fiscais, como imunidades e isenções.

Apreciando o recurso, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em julgamento não unânime, rechaçou os argumentos trazidos pelo Parquet e manteve o processamento da recuperação judicial da associação civil, reforçando que a caracterização de empresa (…) deve ser considerada sob o aspecto corporativo ou institucional, organizado com o objetivo de se obter o melhor resultado econômico, produtivo e socialmente útil” [8].

Esse acórdão recebeu ampla atenção na mídia e recolocou em pauta a discussão do tema. Contudo, permanece, ainda, significativa insegurança jurídica em torno da “dupla identidade” das entidades sem fins lucrativos, as quais passariam, ao mesmo tempo, a ser consideradas como “empresas”, para fins da recuperação judicial, e “não empresas”, para fins de imunidades e isenções tributárias.

Além de Aelbra e Cândido Mendes, o Hospital Evangélico da Bahia, associação sem fins lucrativos sediada em Salvador, pleiteou, em agosto de 2020, o processamento de sua recuperação judicial [9]. O juízo responsável, assim como no caso da Cândido Mendes, deferiu o processamento da recuperação judicial, entendendo que associações sem fins lucrativos podem requerer recuperação judicial, uma vez que em seu artigo 2º, que dispõe sobre os agentes econômicos impossibilitados de valerem-se da referida lei, não menciona as associações.

O juízo concluiu que há omissão da norma e que, nesses casos, deve haver uma interpretação extensiva da legislação, com apoio em uma visão finalística dos artigos 1º da LRF e 966 do Código Civil. Diante disso, considerando que o Hospital Evangélico da Bahia desenvolve atividades econômicas (colocando bens e serviços no mercado, buscando superávit, sustentabilidade econômica e crescimento patrimonial”) e frisando o fato de que a instituição tem relevância econômica, gera empregos, traz resultados positivos para a sociedade e gera impostos e riquezas, concluiu por julgá-la apta a requerer a recuperação judicial.

Como se vê, a possibilidade de instituições sem fins lucrativos buscarem amparo nos mecanismos de equacionamento de dívidas previstos na LRF permanece uma discussão acalorada, a ser ainda pacificada.

Em abril de 2020, a Câmara dos Deputados recebeu o Projeto de Lei 1.397/2020, que buscava instituir medidas de caráter emergencial para enfrentamento da pandemia. Tal projeto definia como agente econômico qualquer pessoa natural ou jurídica que exerça ou tenha por objeto o exercício de atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade” (artigo 2º, parágrafo 1º), permitindo a interpretação de que associações, fundações e outros agentes econômicos que não fossem empresas em sentido estrito poderiam se sujeitar à recuperação judicial, extrajudicial e falência [10].

Contudo, o Projeto de Lei 1.397/2020 foi arquivado e a Lei 14.112/2020, que reformou a LRF, nada dispôs sobre o assunto das associações e fundações. Nessa linha, apesar da redação do artigo 1º da LRF permanecer a mesma, abriu-se a possibilidade do uso do argumento de que o legislador deliberadamente deixou de adotar a definição ampla de agentes econômicos”, já que outros pontos tidos por relevantes foram transportados do Projeto de Lei 1.397/2020 para o projeto de lei que resultou na reforma da LRF, tais como a disciplina de produtores rurais e da conciliação e mediação antecedentes.

Desse modo, mesmo com a reforma da LRF trazida pela Lei 14.112/2020, o debate sobre a possibilidade de equiparar entidades sem fins lucrativos com empresas, de forma a legitimá-las a se valer de recuperações judiciais, extrajudiciais ou conciliações e mediações antecedentes, permanece em aberto. A jurisprudência parece apontar para uma análise caso a caso no sentido de admitir a concessão de proteção sob a LRF para aquelas instituições sem fins lucrativos que exerçam atividade de impacto social e preencham os requisitos da teoria da empresa, exceto, naturalmente, a distribuição de lucros a seus sócios.

 

[1] Tal discussão não chega a ser exatamente inédita. Já em 2006, travou-se discussão judicial sobre a possibilidade de uma associação civil, a Casa de Portugal, ingressar com recuperação judicial. O litígio chegou ao STJ (REsp 1.004.910/RJ), que confirmou a possibilidade dela se valer da recuperação judicial com base, entre outras razões, na relevância do papel social desempenhado, na teoria do fato consumado e nos princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações.

[2] O Decreto-lei nº 7.661/45 referia-se ao longo de seu texto ao “comerciante” e às “sociedades comerciais”.

[3] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 52. Em sentido similar, ver TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 56; MELLO FRANCO, Vera Helena de; e SZTAJN, Rachel. Falência e recuperação da empresa em crise. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 20; e MAMEDE, Gladson° Manual de direito empresarial. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 41.

[4] AYOUB, Luiz Roberto e CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas [livro eletrônico]. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017; MANDEL, Julio Kahan° Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas Anotada. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 9. PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, Associações e Entidades de Interesse Social, 9ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 518; e WAISBERG, Ivo e RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. A ultrapassada teoria da empresa e o direito das empresas em dificuldades. In: Temas de direito da insolvência: Estudos em homenagem ao Professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo, 2017, p. 708.

[5] A discussão a respeito da possibilidade de se prorrogar o período de suspensão de execuções (stay period) sedimentou-se, no STJ, no sentido de ser possível desde que o atraso não tenha se originado por ato do devedor, o que é frontalmente diferente do comando legal que não deixava qualquer margem para dúvida da impossibilidade da prorrogação ao fazer referência ao “prazo improrrogável” e que “em hipótese nenhuma excederá” tal período.

[6] Processo nº 00093754-90.2020.8.19.0001, 5ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, Juíza Maria de Penha Nobre Mauro, 11.05.2020.

[7] BATT, Paloma; HIRSCHHEIMER, Priscila. Escolas e faculdades podem pedir recuperação judicial. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, ano 9, n° 25, p. 181/193, set./dez. 2020. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/135/42003/92690. Acesso em: 28 jan° 2021.

[8] Agravo de instrumento nº 0031515-53.2020.8.19.0000, 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rel. Des. Nagib Slaibi Filho, J. 03.09.2020.

[9] Processo nº 8074034-88.2020.8.05.0001, 1ª Vara Empresarial de Salvador, Juiz Argemiro de Azevedo Dutra, 17.08.2020.

[10] A matéria já havia sido objeto, em 2009, do Projeto de Lei 219/2009 do Senador Paulo Paim, atualmente arquivado, que alteraria o artigo 70 da LRF, para permitir que associações e fundações pudessem requerer um plano especial de recuperação judicial, sem implicação em falência do devedor em caso de seu descumprimento.