A mudança apresentada pelo pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019) no delito de estelionato, que passou a exigir representação da vítima para tramitação da ação penal, não pode ser aplicada retroativamente para beneficiar o réu em processos cuja denúncia já foi oferecida pelo Ministério Público.

Com esse entendimento, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça pacificou a questão, motivo de divergência entre as turmas que julgam matéria penal. Prevaleceu a posição da 5ª Turma, menos abrangente e que evita que processos já em curso sejam afetados.

O pacote “anticrime” transformou a ação referente ao crime do artigo 171 do Código Penal de pública incondicionada para pública condicionada à representação — com algumas exceções descritas nos incisos do parágrafo 5º (conduta praticada contra administração pública, direta ou indireta; contra criança ou adolescente; e contra maior de 70 anos ou incapaz).

Venceu o voto divergente do ministro Ribeiro Dantas, que coincide com a posição da única decisão colegiada tomada pelo Supremo Tribunal Federal até agora, pela 1ª Turma.

O julgamento foi encerrado nesta quarta-feira (24/3), com a leitura de voto-vista do ministro Felix Fischer, que acompanhou a divergência. Formaram maioria com eles os ministros Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e João Otávio de Noronha.

Ficaram vencidos o relator, ministro Nefi Cordeiro, que antes de se aposentar votou pela posição mais benéfica com o réu adotada pela 6ª Turma: a ideia de que a mudança retroage até o trânsito em julgado da ação por estelionato, mas não leva à imediata extinção da punibilidade.

Assim, seria o caso de intimar a vítima para manifestar o interesse na continuação da persecução penal, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência. Ficaram vencidos com o relator os ministros Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti.

Condição de procedibilidade
O posicionamento vencedor na 3ª Seção indica que a exigência da representação incluída na lei pelo pacote “antocrime” é condição de procedibilidade — e não de prosseguibilidade — da ação penal. Assim, a retroatividade da representação deve se restringir à fase policial, não alcançando processo em curso.

Ao abrir a divergência, em 10 de fevereiro, o ministro Ribeiro Dantas criticou o alcance indeterminado que a retroação da norma pode ganhar. “Imagine alguém que foi julgado e condenado, que a decisão transitou em julgado, agora ter que voltar e perguntar à vítima se ela queria o processo. Não se pode saber o tamanho da Caixa de Pandora que vai se abrir com a retroatividade”, disse, ao propor marcos temporais bem definidos.

No voto vencido, o já aposentado ministro Nefi Cordeiro defendeu que embora a alteração da lei “anticrime” tenha criado uma condição a mais para a ação penal, a norma tem natureza penal porque afeta o direito do Estado de punir. Assim, deve retroagir em benefício do réu.

Citou também que a menor retroação feriria a isonomia jurídica e geraria insegurança, pois poderia criaria desigualdade de tratamento entre réus que praticaram o mesmo crime, mas que tiveram a denúncia oferecida em momentos distintos.

“Normas de cunho abolicionista, ainda que em formato de diminuição da pena ou condicionamento para ação penal, devem sempre ser interpretadas em sentido mais amplo, que traga algum benefício, mormente em país cujo sistema penitenciário já foi reconhecido como estado de coisas inconstitucional”, reforçou o ministro Rogério Schietti, ao votar vencido nesta quarta.

Definição anticrime
Trata-se do segundo tema referente à lei “anticrime” a ser pacificado pela 3ª Seção do STJ recentemente. Em fevereiro, o colegiado definiu que a norma torna absolutamente inviável que o juiz, de ofício, converta em preventiva a prisão em flagrante. Ela só pode ocorrer a requerimento do Ministério Público ou por representação da autoridade policial.