Quatro anos depois de ter sido denunciado, o esquema de cessões fraudulentas de crédito trabalhista envolvendo um juiz do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo ganhou um novo capítulo: a Polícia Federal passou a investigar os possíveis ilícitos no fim do ano passado. A abertura do inquérito policial ocorreu depois que o Ministério Público Federal se manifestou favoravelmente à investigação.

Mesmo assim, os demais procedimentos em tramitação no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, no Tribunal Superior do Trabalho em Brasília e no Conselho Nacional de Justiça estão praticamente parados.

O inquérito na PF foi aberto por ordem do Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, tendo em vista o foro privilegiado do juiz. Dentro do TRT paulista, o caso está categorizado como sensível, correndo em absoluto sigilo.

Em julho de 2018, a ConJur já havia mostrado que a cessão de créditos voltara a ser problema para a Justiça do Trabalho. Na ocasião, a empresa OPTR2 Empreendimentos apresentou um a reclamação ao Tribunal Superior do Trabalho em que se dizia vítima de uma fraude envolvendo bens oferecidos a penhora que havia adjudicado. O esquema teria sido posto em prática por volta de 2007.

Nesta reclamação, a companhia afirmava que o juiz que deu andamento à venda dos bens apresentados à execução foi parte do esquema que beneficiou a compradora dos créditos.

A denúncia mostrava que a OPTR2 fez a aquisição do imóvel de uma das empresas ligadas ao grupo econômico Manaus Atacadão. Esse grupo havia apresentado como bem a penhora para a execução de dívidas trabalhistas uma propriedade avaliada em R$ 50 milhões, através de um perito nomeado pela Justiça do Trabalho.

Entretanto, no ano de 2007, esses créditos trabalhistas foram comprados dos ex-funcionários pela empresa Hanna Incorporações e Vendas junto com diversos créditos trabalhistas do mesmo grupo. A OPTR2 alegou que esses bens não poderiam mais ser tratados como créditos trabalhistas, já que não estariam mais envolvidos na discussão de direitos dos trabalhadores, mas sim numa relação negocial entre as empresas.

Ou seja, o caso não poderia estar na Justiça do Trabalho, já que não seria mais uma discussão de direitos trabalhistas e nem se trataria de relações de trabalho, mas sim de relações negociais.

Apuração na Corregedoria
Um mês antes de a denúncia ser veiculada, o Pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) já havia instaurado processo administrativo disciplinar para apurar a participação do juiz Lúcio Pereira de Souza, da 2ª Vara do Trabalho de São Paulo, nessa venda fraudulenta de créditos trabalhistas.

O processo havia sido aberto depois de uma investigação realizada pela Corregedoria com base em denúncia da OPTR2.

A Corregedoria do TRT apurava a denúncia da empresa que apontava que o magistrado recusou o pagamento da referida dívida trabalhista a fim de cancelar a penhora e sua alienação, nomeou um corretor com o qual mantém relações advocatícias, aceitou a oferta de uma empresa com menos de 15 dias de existência e vendeu o imóvel por um valor 50% menor do que o determinado.

Na época, a ConJur informou que o TRT-2 não havia analisado o afastamento de Lúcio Pereira de Souza, que permanece no cargo até hoje, e também liderou a condução da ação na qual surgiu a denúncia.

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região havia aberto um processo administrativo contra o juiz do trabalho, no qual ele foi condenado à pena de censura. Porém, por erro na formação de quórum para o julgamento, o processo acabou sendo anulado, por decisão do Conselho Nacional de Justiça.

Acusações
O esquema teria começado com várias ações trabalhistas movidas contra a empresa que faliu, a Manaus Atacadão. A OPTR2 havia adquirido um imóvel de Sang In Kim, que por sua vez o adquirira da empresa Helebra Participações Sociedade Civil Ltda.

Contudo, em dado momento da execução trabalhista, o juiz decidiu declarar fraude à execução e colocar a Manaus Atacadão e a Helebra como sendo do mesmo grupo econômico, o que abriu a oportunidade de penhorar o imóvel pertencente à OPTR2.

Descobriu-se depois que, por trás disso tudo, as execuções trabalhistas não pertenciam mais aos cedentes. Os créditos trabalhistas haviam sido comprados por valores módicos pela empresa cessionária, a Hanna Incorporações e Vendas, em 2007, o que deveria acarretar a perda da competência da Justiça do Trabalho para continuar no caso.

Entretanto, esse fato foi omitido e a empresa Hanna continuou atuando ilegalmente nos processos em nome dos obreiros, o que não é permitido pela legislação processual. O juiz do caso agiu dessa maneira para que os processos continuassem tramitando perante a 2ª Vara do Trabalho, da qual o próprio Lúcio Pereira de Souza é titular.

Este problema relatado já passou pelo crivo de tribunais regionais ao TST: a perda do caráter trabalhista retira o interesse no crédito, já que os juros passariam a ser menores e a execução perderia a preferência na fila.

Na denúncia em apuração em vários órgãos, a Hanna Incorporações e Vendas obteve vários imóveis utilizando-se do mesmo estratagema. A OPTR2 pediu que o juiz fosse investigado por uma sequência de atos no processo de penhora do imóvel do qual ela é proprietária.

Segundo a empresa, o magistrado recusou o pagamento da dívida trabalhista a fim de cancelar a penhora e sua alienação, nomeou um corretor com o qual mantém relações advocatícias, aceitou a oferta de uma empresa com menos de 15 dias de existência e vendeu por um valor 50% menor do que o determinado.

O juiz, em vez de determinar a hasta pública, determinou a alienação por um corretor particular, procedimento que não permitido pela Corregedoria do TRT da 2ª Região. Para poder fazê-lo, o juiz invoca um provimento do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região, do Rio Grande do Norte.

A alienação do imóvel foi feita por um corretor que era advogado particular do próprio juiz Lúcio Pereira de Souza.  Esse corretor já atuou em diversos processos presididos pelo juiz, ora como perito avaliador, ora como perito contábil. Além desses trabalhos de corretagem e peritagem de imóvel e contábil, também é proprietário de uma academia de ginástica.

A empresa M3JF, arrematante do imóvel, não cumpriu com as exigências determinadas pelo próprio magistrado no processo. Por exemplo, não foi realizado depósito de 50% do valor da alienação, ao passo que foram depositados R$ 30 mil. Mesmo assim, a venda foi aceita por Souza.

Mesmo diante de tantas irregularidades, Souza não abriu mão de continuar atuando no processo, a despeito de contra ele existirem recursos processuais e duas Exceções de Incompetência, as quais estão ainda represadas na Vara. O próprio juiz se deu por competente e se recusa a enviar as exceções ao TRT, que é o órgão constitucional competente para decidir a respeito.

Modus operandi
O imóvel em questão foi alienado pelo corretor pelo valor de R$ 25 milhçoes e, como a Hanna não poderia aparecer, o imóvel foi comprado pela empresa de fachada M3JF Empreendimentos Imobiliários, constituída 13 dias antes de o negócio ser concretizado.

A prova da milionária comissão recebida pelo corretor só foi juntada aos autos depois de vários recursos da OPTR2, mas, surpreendentemente, a comissão não foi paga em nome do corretor, como deveria ser, mas em nome de uma empresa privada.

Paralelamente, nessa época, o juiz Lúcio Pereira de Souza sofria uma execução da Caixa Econômica Federal, que foi quitada a vista. Este fato evidencia a necessidade de os procedimentos investigativos conterem a quebra dos sigilos bancários e fiscal do magistrado e dos outros envolvidos, de modo que se possa entender o caminho que o dinheiro percorreu em toda o esquema — para acusar ou inocentar o juiz e os demais envolvidos.

Caso semelhante
Dentre os diversos procedimentos existentes contra o juiz nas Corregedorias do TRT da 2ª Região, do TST e CNJ, um deles chama atenção um outro caso semelhante: o Pedido de Providências 0010515-26.2020.2.00.0000, em trâmite perante o CNJ, apura a venda de um outro imóvel determinada pelo magistrado sem a devida intimação das partes do processo e com valor de avaliação defasado.

Nesse outro caso, além de não intimar as partes e vender a preço vil, o juiz aceitou a proposta de R$ 1,5 milhão realizada por terceiro e recusou a proposta do próprio executado, que era maior, de R$ 1,7 milhão.

Neste processo de alienação determinada por Souza, foi nomeado o mesmo corretor que realizou a venda envolvendo a OPTR2. Mais ainda. O terceiro arrematante é a mesma empresa do caso OPTR2: a Hanna Incorporações e Vendas.

Em agosto de 2018, a Hanna Incorporações e Vendas, a empresa envolvida na venda de créditos trabalhistas apontada como fraudulenta, disse à ConJur que “jamais se envolveu em qualquer espécie de fraude ou esquema para desenvolver suas atividades comerciais”.

O TRT 2ª Região foi procurado para se posicionar sobre esses casos. Também foi solicitada entrevista com o juiz Lúcio Pereira de Souza. Não houve retorno. Em 2019, o magistrado havia afirmado à própria ConJur que só iria falar sobre as acusações quando fosse intimado pela Corregedoria do TST. O espaço continua aberto para posicionamento de ambos.