Por Laís Bergstein

O direito ao conserto ou o direito à reparação tratado neste estudo não corresponde à responsabilidade do fornecedor pelos danos resultantes de um fato ou vício de qualidade ou quantidade identificados no produto ou serviço. Tratamos, diferentemente, da legítima expectativa de se poder consertar um bem que, durante a sua vida útil, apresenta falhas de funcionamento resultantes de desgaste natural ou mesmo de um descuido do consumidor.

Para o senso comum a questão pode ser simples: “Você comprou o dispositivo, ele é seu, então deve ter o direito de consertá-lo” [1]. Entretanto, no contexto dos serviços simbióticos [2] do consumo digital, a expectativa de conseguir consertar um produto híbrido a um custo razoável é frequentemente uma distante utopia.

Nos Estados Unidos, por exemplo, fabricantes apoiam-se na Digital Millennium Copyright Act, a lei federal que dispõe sobre direitos autorais, para forçar os consumidores a reparar seus dispositivos exclusivamente junto ao próprio fabricante ou assistências técnicas autorizadas. Com o uso de tecnologias de gestão de direitos digitais (digital rights management — DRM, ou software tecnological protection measures — TPMs), os proprietários dos softwares impedem que consumidores executem certas operações.  E é, até certo ponto, legítimo o interesse na proteção de direitos autorais incidentes sobre os softwares, mas a proteção da propriedade industrial não pode ser utilizada como pretexto para forçar uma nova compra prematura.

No Brasil, a Lei nº 9.609/1998, que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, estabelece um regime claro de proteção aos direitos autorais e preservação dos direitos de usuários de programas de computador. Embora o texto tenha sido claramente pensado para um contexto no qual hardware e software representavam mercados bastante distintos, as garantias alcançam também os usuários dessas aplicações, entre eles, os consumidores. Assegura-se logo no artigo 7º que “o contrato de licença de uso de programa de computador, o documento fiscal correspondente, os suportes físicos do programa ou as respectivas embalagens deverão consignar, de forma facilmente legível pelo usuário, o prazo de validade técnica da versão comercializada”.

Ocorre que em inúmeras situações de contratação de aplicações e conteúdos eletrônicos o prazo de disponibilidade da licença de uso ou de validade técnica da respectiva versão do software não é devidamente esclarecida ao consumidor (violam-se os artigos 7º e 8º da Lei nº 9.609/1998), parte como consequência da comunicação indireta, visual e virtual característica do mercado contemporâneo [3]. Da mesma forma, inúmeros fornecedores não informam a via útil estimada do seu produto ou serviço (informação essencial para os fins do Decreto 2.181/1997, artigo 13, XXI, bem como para a comparação de preços e características de diferentes bens).

A boa-fé nas relações negociais, especialmente as contratações eletrônicas [4], e a proteção da confiança legítima em tempos digitais [5], impõem um novo paradigma de transparência e lealdade aos fornecedores, acentuando o seu dever de informar [6], a ser implementado a despeito do aparente desinteresse da indústria no alongamento da vida útil dos produtos [7]. É preciso superar a desinformação quanto à durabilidade das contratações (vida útil dos produtos e serviços) que impera no mercado para que essa nova formatação negocial — híbrida ou simbiótica — não seja lesiva aos interesses econômicos dos consumidores (CDC, artigo 4º) e se promova uma concorrência leal.

A problemática também é identificada pela Consumers International sob a perspectiva da “erosão da propriedade” (erosion of ownership[8], fenômeno este bastante perceptível no comércio de livros eletrônicos [9], aparelhos celulares e dispositivos de streaming [10], por exemplo. O negócio jurídico verdadeiramente celebrado nesses casos não é uma compra e venda, que transferiria ao proprietário os direitos de usar, gozar e dispor, mas corresponde a uma cessão temporária (muitas vezes insuscetível de transmissão pela via sucessória) de direitos de propriedade industrial, obstando, retardando ou encarecendo o reparo.

O Acordo Trips (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), que prevê regras de direitos de propriedade industrial aos países integrantes da OMC dele signatários, ressalva em seu artigo 13 que devem ser protegidos os legítimos interesses do titular, reconhecendo os preceitos de fair use e o fair dealing [11], enquanto o artigo 46 assegura a proporcionalidade nas medidas implementadas para coibir violações a direitos autorais, considerando-se inclusive os interesses de terceiros [12]. As diretrizes internacionais devem servir como patamar mínimo de proteção aos consumidores no plano nacional, sobretudo em ordenamentos jurídicos que reconhecem a vulnerabilidade dos consumidores (CDC, artigo 4º, I).

Obstáculos ao reparo são atualmente presentes em diversos setores, especialmente com tratores [13], veículos automotores [14], smartphones [15], máquinas de café e refrigeradores [16], cujas peças com desgaste mais acelerado não podem tecnicamente ser substituídas, o seu custo é impeditivo ou inexiste concorrência no setor. Começaram, então, a surgir propostas legislativas de estabelecimento do direito ao conserto — right to repair —, que obrigaria os fabricantes a disponibilizar ferramentas, peças de reposição, equipamentos de software para proprietários de dispositivos e técnicos independentes [17].

O direito ao conserto tem íntima relação com a superação da obsolescência programada, a preservação dos interesses econômicos dos consumidores e com a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado [18]. Há, portanto, implicações morais a serem consideradas no direito ao conserto [19], inclusive os impactos da reserva de mercado, das práticas de venda casada, dos crescentes custos aos consumidores e da necessária redução da geração de resíduos sólidos resultante do aumento da longevidade dos produtos ou serviços híbridos.

A proteção do consumidor é crucial para a economia digital de desenvolver [20]. Se a maior mentira da internet é a frase “eu li e concordo com os termos e condições de uso”, a grande verdade é que cada dia mais o consumidor se vê sem escolha senão — selecionar, clicar e torcer pelo melhor — “tick, click and hope for the best” [21]. Cabe aos legitimados pela defesa do consumidor a desafiadora tarefa de reverter esse cenário, identificando as práticas comerciais abusivas e buscando o equilíbrio das relações de consumo.

[1] MONTELLO, Kyle S. The Right to Repair and the Corporate Stranglehold over the Consumer: Profits over People. 22 Tul. J. Tech. & Intell. Prop. 165 (2020). p. 167.

[2] MARQUES, Claudia Lima. MIRAGEM, Bruno. “Serviços simbióticos” do consumo digital e o PL3.514/2015 de atualização do CDC. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 132, p. 91-118, Nov/Dez, 2020. DTR\2020\14417.

[3] MUCELIN, Guilherme. Conexão online e hiperconfiança: os players da economia do compartilhamento e o Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 268-269.

[4] MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Paulo, Atlas, 2016.

[5] MARQUES, Claudia Lima; LORENZETTI, Ricardo Luis; CARVALHO, Diógenes Faria de; MIRAGEM, Bruno. Contratos de serviços em tempos digitais: contribuição para uma nova teoria geral dos serviços e princípios de proteção dos consumidores. São Paulo: Thomson Reuters, Brasil, 2021. p. 300-303.

[6] KRETZMANN, Renata Pozzi. Informação nas relações de consumo: o dever de informar do fornecedor e suas repercussões jurídicas. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2019. p.

[7] ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Perspectivas sobre o direito à reparação: um novo direito subjetivo do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 136, p. 423-440, Jul.Ago, 2021

[8] COLL, Liz; SIMPSON, Robin. The Internet of Things and challenges for consumer protection. London: Consumers International, 2016. p. 34. Disponível em: <http://www.consumersinternational.org/media/1292/connection-and-protection-the-internet-of-things-and-challenges-for-consumer-protection.pdf>.

[9] O contrato de licença do software ibooks para iOS da Apple prevê que “Apps disponibilizados através da App Store são licenciados a você, não vendidos.” (EUA. Apple Inc. Termos e Condições dos Serviços de Mídia da Apple. Disponível em: <https://www.apple.com/legal/internet-services/itunes/br/terms.html>. Acesso em: 17 ago 2021.) Todavia, em diversos aplicativos disponibilizados na loja virtual a indicação é “comprar”.

[10] Aqui em casa a Apple TV, desde 2020, não transmite mais os jogos da NBA, que antes eram acessíveis pelo app League Pass. A mensagem que aparece na minha tela é a seguinte: “NBA League Pass. Starting with the 2019-2020 season, NBA League Pass will no longer be supported on Apple TV 3rd Generation. To watch NBA League Pass, please download the NBA app using a different supported device, such as a 4th Generation Apple TV or later. To view the list of our supported devices or to speak with NBA support, please visit support.watch.nba.com.” Seria este um ato da NBA MEDIA VENTURES LLC, desenvolvedora do aplicativo, ou da Apple Inc, fabricante do aparelho? Ao que tudo indica, de ambas. A (des)informação constante no site acima indicado é de que “além de computador, tablet e celular, o NBA League Pass está disponível no tvOS em todos os países“, sem qualquer tipo de ressalva quanto à geração do aparelho a ser utilizada. (Disponível em: <https://support.watch.nba.com/hc/pt-br/articles/115000585953-Apple-TV>. Acesso em: 16 ago. 2021). Vamos torcer para que o mesmo não aconteça também com o meu app do Netflix…

[11] “Article 13. Limitations and Exceptions. Members shall confine limitations or exceptions to exclusive rights to certain special cases which do not conflict with a normal exploitation of the work and do not unreasonably prejudice the legitimate interests of the right holder.”

[12] “Article 46. Other Remedies.   In order to create an effective deterrent to infringement, the judicial authorities shall have the authority to order that goods that they have found to be infringing be, without compensation of any sort, disposed of outside the channels of commerce in such a manner as to avoid any harm caused to the right holder, or, unless this would be contrary to existing constitutional requirements, destroyed. The judicial authorities shall also have the authority to order that materials and implements the predominant use of which has been in the creation of the infringing goods be, without compensation of any sort, disposed of outside the channels of commerce in such a manner as to minimize the risks of further infringements. In considering such requests, the need for proportionality between the seriousness of the infringement and the remedies ordered as well as the interests of third parties shall be taken into account. In regard to counterfeit trademark goods, the simple removal of the trademark unlawfully affixed shall not be sufficient, other than in exceptional cases, to permit release of the goods into the channels of commerce.”

[13] A John Deere, maior fabricante de máquinas agrícolas do mundo, também causou comoção com a previsão nos seus contratos de que os clientes adquirem apenas uma “licença implícita para operar o veículo durante a vida útil do veículo”, ao invés da propriedade do maquinário, isso devido à sua preocupação com o uso do software instalado nos equipamentos. (EUA. Wired Magazine. WIENS, Kyle. We Can’t Let John Deere Destroy the Very Idea of Ownership. Disponível em: <https://www.wired.com/2015/04/dmca-ownership-john-deere/>.) Os impactos dessa linha da empresa foram analisados pela Consumers International. Veja o relatório de Liz COLL e Robin SIMPSON: The Internet of Things and challenges for consumer protection. London: Consumers International, 2016, já citado.

[14] CRS Reports & Analysis. Legal Sidebar. Copyright Law Restrictions on a Consumer’s Right to Repair. Cars and Tractors. Bluebook 21st ed. 1 (September 18, 2015).

[15] Como exemplifica Bruno Miragem, “o valor de um smartphone estará cada vez menos na sua utilidade original de realizar ligações telefônicas, e mais na capacidade de armazenamento de dados e aplicações de internet que permitem a realização de uma série de tarefas, com diferentes níveis de interação humana.” (MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do consumidor. In: MARQUES, Claudia Lima; LORENZETTI, Ricardo Luis; CARVALHO, Diógenes Faria de; MIRAGEM, Bruno. Contratos de serviços em tempos digitais: contribuição para uma nova teoria geral dos serviços e princípios de proteção dos consumidores. São Paulo: Thomson Reuters, Brasil, 2021. p. 343.)

[16] Como lembra Montello, essa não foi sempre a realidade. Quando foi lançado, em 1977, o computador Apple II era acompanhado de um manual gratuito com esquemas para auxiliar eventuais reparos. (MONTELLO, Kyle S. The Right to Repair and the Corporate Stranglehold over the Consumer: Profits over People. 22 Tul. J. Tech. & Intell. Prop. 165, 2020). É radical a mudança no setor. Mais recentemente, lembramos, a instalação de atualizações de software que reduziam a velocidade dos iphones resultou diversas ações coletivas contra a mesma empresa, acusada da prática de obsolescência programada. A doutrina de Moyse atribui ao político Bernard London a ideia de que a prática da obsolescência programada poderia ser uma forma de retomada da economia, estimulando o comércio: “This section situates us in the United States at the turn of the 20th century when the term ‘planned obsolescence’ was first coined by philanthropist and dilettante politician Bernard London. In a series of short texts published between 1932 and 1935, London outlined possible policy solutions to end the Great Depression. He proposed to set a legal term for the use of products to force their replacement and boost production, consumption and employment.” (MOYSE, Pierre-Emmanuel. The Uneasy Case of Programmed Obsolescence, 71 U.N.B.L.J. 61, 2020).

[17] MOORE, Daniel. (2019). You Gotta Fight For Your Right To Repair: The Digital Millennium Copyright Act’s Effect On Right-To-Repair Legislation. Texas A&M Law Review. 6. 509-540. 10.37419/LR.V6.I2.6.

[18] EFING, Antonio Carlos; BERGSTEIN, Lais. A responsabilidade compartilhada pelos resíduos pós-consumo em prol do combate à poluição transfronteiriça. Revista ius et veritas, N° 49, Diciembre 2014/ ISSN 1995-2929.

[19] ROSBOROUGH, Anthony D. Unscrewing the Future: The Right to Repair and the Circumvention of Software TPMs in the EU, 11 (2020) JIPITEC 26-1. Disponível em: <https://www.jipitec.eu/issues/jipitec-11-1-2020/5083>. Acesso em: 16 ago 2021.

[20] Veja mais em: UNCTAD. MOREIRA, Teresa. Consumer protection crucial for the digital economy to thrive. <https://unctad.org/news/consumer-protection-crucial-digital-economy-thrive>. March 13, 2020.

[21] “If the consumer wishes to access and realize the benefits of the service in question, they are left with little choice but to tick, click and hope for the best. There is no opportunity to negotiate, or to agree to some parts but not others. If they tick the box, they are deemed to have consented to everything stated in the privacy notice.” COOL, Liz. Personal data empowerment: Time for a fairer data deal? Citizens Advice, 2015: <https://www.citizensadvice.org.uk/personal-data-empowerment-time-for-a-fairer-deal/>. Acesso em: 16 ago. 2021.