Por Vanessa Cerqueira Reis de Carvalho

A nova Lei de Licitações, PL 4253/20, traz um capítulo em destaque para o pagamento, cujo artigo 140 prevê para sua realização, ordem cronológica para cada fonte diferenciada de recursos, subdividida pelas seguintes categorias de contratos: fornecimento de bens, locações, prestação de serviços e realização de obras.

Essa ordem só pode ser alterada, segundo o parágrafo primeiro do mesmo artigo, mediante prévia justificativa da autoridade competente e posterior comunicação ao órgão de controle interno da Administração e ao Tribunal de Contas competente, exclusivamente nas seguintes situações:

1) Grave perturbação da ordem, situação de emergência ou calamidade pública;

2) Pagamento a microempresa, empresa de pequeno porte, agricultor familiar, produtor rural pessoa física, microempreendedor individual e sociedades cooperativas, desde que demonstrado o risco de descontinuidade do cumprimento do objeto do contrato;

3) Pagamento de serviços necessários ao funcionamento dos sistemas estruturantes, desde que demonstrado o risco de descontinuidade do cumprimento do objeto do contrato;

4) Pagamento de direitos oriundos de contratos em caso de falência, recuperação judicial ou dissolução da empresa contratada;

5) Pagamento de contrato cujo objeto seja imprescindível para assegurar a integridade do patrimônio público ou para manter o funcionamento das atividades finalísticas do órgão ou entidade, quando demonstrado o risco de descontinuidade da prestação de um serviço público de relevância, ou o cumprimento da missão institucional.

Esse novo dispositivo supera, em muito, o que até o momento é disciplinado pelo artigo 5 º da Lei nº 8666/93, que dispõe de texto bem mais conciso, no Capítulo I das Disposições Gerais, Seção I, “Dos Princípios”:Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada”.

Tal destaque denota a importância dada pelo novel legislador ao pagamento, cujo atraso tolerável, nos moldes do artigo 78, XV, da Lei nº 8666/93 é de 90 dias e, agora, conforme previsão do artigo 136, parágrafo 2º, inciso IV, do PL 4253/20 será de dois meses, contados da emissão da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela Administração por despesas de obras, serviços ou fornecimentos.

E ainda tem destaque a norma inovadora prevista no §2º do artigo 140 de que a inobservância imotivada da ordem cronológica de que trata o caput desse artigo ensejará a apuração de responsabilidade do agente responsável, cabendo aos órgãos de controle a sua fiscalização.

O texto abrange apuração, responsabilização e fiscalização pelos órgãos de controle, que deve ser realizado não somente posteriormente ao ato, com a comunicação, mas também de forma prévia em atenção ao princípio da prudência, em forma de prévia comunicação de pagamento. O controle pode ser, inclusive, exercido pelo próprio interessado na ordem cronológica, ou cidadão, mediante o acompanhamento determinado pelo §3º do artigo 140 do PL no sítio da internet da administração gestora do contrato.

Tais dispositivos, sobre o tempo e cronologia do pagamento, denotam a intenção do legislador em corrigir de maneira eficaz a antiga prática administrativa em postergar os pagamentos, não dar a devida publicidade aos mesmos e, algo mais danoso ainda, praticar atos abusivos de rolagem de dívidas com a inscrição em restos a pagar.

Já nos idos da publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, logo em seu parágrafo 1º do artigo 1º, já se pontuava o intuito da legislação em prevenir riscos e corrigir desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, entre os quais se inclui a inscrição em restos a pagar, que ora nos interessa.

Os restos a pagar são conforme disposição prevista pelo artigo 36 da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, in verbis:

“Artigo 36  Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro, distinguindo-se as processadas das não processadas.
Parágrafo único. Os empenhos que correm à conta de créditos com vigência plurienal, que não tenham sido liquidados, só serão computados como Restos a pagar no último ano de vigência do crédito.”

A Lei nº 4320/64 distingue as despesas em processadas e não processadas, o que, de acordo com a doutrina de J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis:

“São considerados processados os Restos a Pagar referentes a empenhos executados, liquidados e, portanto, prontos para pagamento, ou seja, o direito do credor já foi verificado, conforme disposições contidas nesta lei.
São considerados não processados os empenhos de contratos e convênios que se encontram em plena execução, não existindo ainda o direito líquido e certo do credor” [1].

Em restos a pagar devem ser inscritas todas aquelas despesas processadas ou não, que serão efetivadas no exercício seguinte. É a chamada dívida flutuante de curto prazo [2].

Na prática, no ano seguinte, a receita do ente público terá de ser suficiente para o adimplemento de todas as despesas previstas no orçamento do ano corrente mais aquelas advindas do ano anterior, por conta dos restos a pagar.

No intuito de impedir o legado de débitos ao sucessor [3], a Lei de Responsabilidade Fiscal disciplinou o tratamento que deve ser adotado na inscrição dos restos a pagar pelo administrador público, para encerrar as contas do exercício financeiro, correspondente aos dois últimos quadrimestres do mandato eleitoral , no capítulo da dívida e do endividamento.

Segundo a lei, em seu artigo 42:

“É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”.

Mais adiante, no parágrafo único, explicita-se que:

“Na determinação da disponibilidade de caixa serão considerados os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício”.

Ou seja, o governante fica impedido de assumir obrigação que não possa ser paga até o final do ano, ou que tenha disponibilidade de caixa suficiente para pagamento no exercício seguinte.

Essa é uma norma de prudência para não gerar dívidas para sucessores, porém, mesmo com a vedação ao final da gestão, o que nos deparamos na realidade, muitas das vezes, foi com a rolagem da dívida ano após ano, pelo próprio agente público no seu próprio mandato!

Assim, surge com a nova legislação a esperança de que essa prática seja fortemente coibida, aumentando a confiança na administração pública e no correto cumprimento de seus deveres. Isso, certamente, acarretará a diminuição dos gastos públicos, eis que reduzida a oneração dos contratos com a alta taxa de inadimplência pública.

E quem sabe já não estaremos, enfim, no caminho da plena efetividade do artigo 1º, parágrafo único, da Lei de Responsabilidade Fiscal, com o equilíbrio das contas públicas no âmbito contratual e extinção da utilização dos restos a pagar como forma rolagem de dívida.

 

[1] In “A Lei 4.320 comentada”, Rio de Janeiro: IBAM, 2000/2001, p.93.

[2] Segundo Aliomar Baleeiro “a dívida flutuante se caracteriza pelos vencimentos em termos brevíssimos, como meses ou um ano no máximo, muito embora a prática de alguns países abra maiores períodos.” In “Uma Introdução à ciência das finanças”, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 513.

[3] Destaco que este planejamento das despesas não é feito só nos dois últimos quadrimestres previstos no artigo 42 da LRF e sim, de acordo com o artigo 9 da lei, de dois em dois meses deverá o administrador verificar o cumprimento de suas metas: “Art. 9 Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.”