As mulheres de Porto Alegre que sofrem violência doméstica têm na Justiça uma aliada para interromper o ciclo de agressões e recomeçar a vida. O Projeto Borboleta, dos Juizados de Violência Doméstica da capital, oferece desde acolhimento para vítimas que chegam ao fórum em busca de um fim para os abusos até cursos profissionalizantes que as ajudem a conquistar independência financeira com uma nova profissão.

Já os agressores são encaminhados para grupos de reflexão em que reconhecem a violência de gênero para se responsabilizar pelo que fizeram e assim transformar seus modos de agir. Com essa abordagem integral do fenômeno da violência doméstica, o projeto venceu, na Categoria Magistrada, a primeira edição do Prêmio Viviane do Amaral, instituído em 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça para reconhecer boas práticas no enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres.

“O Projeto Borboleta é muito importante no processo de transformação das mulheres porque, além das intervenções direcionadas ao acolhimento, individual e em grupo, desenvolve ações que visam o restabelecimento da autoestima, a promoção da saúde mental e, ainda, a capacitação e a qualificação para o trabalho, essenciais para o processo de libertação do ciclo da violência”, afirma a magistrada coordenadora do projeto e juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Madgéli Frantz Machado.

O primeiro atendimento do projeto é no fórum, onde as vítimas são chamadas para audiências e atendimento. Ao chegar na sala de espera, enquanto aguardam o chamado dos juízes, as vítimas são recebidas por uma equipe de estudantes de psicologia.

Para amenizar a inevitável tensão do momento, o atendimento oferece um acolhimento humanizado, que inclui os filhos. Uma brinquedoteca e um fraldário ficam à disposição das mães e filhos. Desde 2013, o projeto criou um fluxo exclusivo para as mulheres, no cartório, na sala onde são atendidas pela equipe técnica ou em outros espaços onde podem fazer cursos e assistir a palestras.

Em instâncias coletivas, as mulheres podem compartilhar experiências comuns e assim se fortalecer mutuamente para enfrentar o desgaste emocional. No grupo de acolhimento, um encontro semanal de três horas de duração, aberto à participação das mulheres atendidas pelo projeto, comparecem até 15 mulheres, pelas dimensões físicas do espaço, além de profissionais voluntários e estagiários de universidades parceiras do projeto das áreas de psicologia e serviço social. Um grupo no WhatsApp reúne aproximadamente 130 mulheres vítimas da violência.

Para tratar da saúde mental de pessoas que enfrentam um momento difícil da vida, que pode envolver separação, ameaças à integridade física e a própria sobrevivência da família, um serviço de psicoterapia oferece até 20 encontros com as vítimas e seus dependentes. Graças a parceiros voluntários que foram se juntando ao projeto desde 2011, atualmente as mulheres têm acesso a arteterapia e aromaterapia.

Abordagem integral
A abordagem do projeto abrange não só as mulheres vítimas da violência e seus filhos, mas também os autores da violência. Desde 2011, os grupos reflexivos de gênero já atenderam 700 homens que agrediram suas companheiras. Desde então, as estatísticas registram apenas 5% de reincidência entre aqueles que concluíram o trabalho.

De acordo com a juíza que está à frente do projeto desde 2011, os grupos proporcionam aos autores o reconhecimento da prática da violência de gênero, assim como a sua a autorresponsabilização pelos atos violentos e a transformação de seus comportamentos.

“Compreendo que os três pilares estão interrelacionados e fazem parte de um processo necessário para que se obtenha o resultado final, que é a efetiva transformação de seus comportamentos e atitudes, colocando em prática, na vida real, o que foi trabalhado nos encontros do grupo: viver uma vida em paz, sem violência, reconhecendo e respeitando as diferenças, encontrando na escuta e no diálogo o caminho necessário para a resolução dos conflitos”, afirma a magistrada.

Ciclo da violência
O sucesso da iniciativa atraiu novos parceiros e permitiu ampliar as possibilidades de mulheres e homens deixarem o ciclo vicioso da violência que ocorre dentro da própria casa. Parceiro do Borboleta desde 2015, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac/RS), passou a ministrar cursos profissionalizantes gratuitamente para alunos indicados pelo projeto em agosto de 2019.

Na primeira turma, que se formou em 5 de dezembro de 2019, novas manicures, garçons, técnicas e técnicos em informática básica saíram da cerimônia de formatura com mais do que um diploma nas mãos. O financiamento do curso é garantido pela Vara de Penas e Medidas Alternativas da Capital, que selecionou o projeto para receber verbas pecuniárias pagas no curso dos processos que tramitam na unidade.

“O que me deu mais orgulho foi participar da solenidade de formatura dos cursos de qualificação para o trabalho ministrados pelo Senac/RS. Mulheres e homens atendidos pelo projeto estavam lá, com seus familiares, talvez no dia mais importante das suas vidas. Muitos deles, emocionados, ainda, por ser o primeiro certificado de conclusão de curso da sua vida. A educação transforma, empodera, abre portas para um mundo melhor”, diz a magistrada.

Futuro
Para evitar que mais famílias sejam destruídas pelo fenômeno da violência doméstica, o projeto aposta na visibilidade da Lei Maria da Penha. Desde 2013, a magistrada e seus servidores percorrem as escolas da capital e do interior disseminando conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, para a prevenção da violência, além de explicando como proceder em caso de violência doméstica contra a mulher.

Denominadas Maria na Comunidade e Maria na Escola, as iniciativas são oportunidades para transformar líderes comunitários e a família escolar das localidades visitadas em aliados na luta contra a violência doméstica.