Por Antonia Espíndola Longoni Klee

A essência ou a verdadeira natureza da proteção do consumidor no comércio eletrônico está em assegurar à parte mais vulnerável da relação contratual o direito de arrependimento. “Conceder ao consumidor um prazo para reflexão, dentro do qual possa manifestar seu arrependimento, sem necessidade de justificá-lo, deixando sem efeito o contrato, sem qualquer responsabilidade” [1], foi uma maneira encontrada pelo legislador para garantir um direito mínimo do consumidor, e constitui “a peça mestra” [2] de proteção nos contratos a distância.

Desde a defesa da tese de doutorado concluída em 2013 no PPGD da UFRGS [3], almeja-se o reforço do direito de arrependimento do consumidor que celebra contrato a distância e por meios eletrônicos com seus fornecedores na sociedade de consumo. O desenvolvimento e o avanço da tecnologia da informação possibilitaram o consumo na era digital em escala mundial. Esse fenômeno, que aproxima pessoas e empresas, consumidores e fornecedores na sociedade de consumo globalizada, exige a reflexão sobre alguns conceitos jurídicos e sua adequação ao meio eletrônico.

As diretivas europeias podem servir de inspiração a essa necessária adequação e atualização do CDC. Concorda-se com o que afirmam Marques e Miragem quanto ao Projeto de Lei 3.514/2015 [4]: “No seu estágio atual de tramitação, permite, inclusive, sugerirmos algumas modificações e temas não tratados, como o dos serviços e produtos inteligentes (…) com algum foco especial nos serviços de consumo” [5]. Faz-se necessário o acréscimo de alguns dispositivos acerca dos produtos (ou conteúdos) e serviços digitais, a que Marques e Miragem denominam “serviços simbióticos” [6].

Com o aumento das transações nos meios digitais, o consumidor nem sempre se sente seguro. “Um dos principais fatores que contribui para a falta de confiança dos consumidores traduz-se na incerteza relativamente aos seus direitos contratuais principais e a ausência de um regime contratual claro para os conteúdos ou serviços digitais” [7]. Nesse sentido, as cláusulas dos contratos de consumo na era digital devem ser objetivas, claras, esclarecedoras e informativas. O direito à informação do consumidor é o que garante a confiança no meio eletrônico impessoal e desumanizado [8].

Retiram-se do artigo 2º da Diretiva (UE) 2019/770 [9], que entrou em vigor no último dia 1º de julho, alguns conceitos: 1) conteúdo digital: dados produzidos e fornecidos em formato digital; 2) serviço digital: a) um serviço que permite ao consumidor criar, tratar, armazenar ou aceder a dados em formato digital; ou b) um serviço que permite a partilha ou qualquer outra interação com os dados em formato digital carregados ou criados pelo consumidor ou por outros utilizadores desse serviço.

Segundo a Diretiva 2019/770, são conteúdo e serviço digitais: programa informático, aplicativo, arquivos de vídeo, de áudio e de música, jogo digital, livro eletrônico e outras publicações eletrônicas, bem como serviços digitais que permitem a criação, o tratamento ou o armazenamento de dados em formato digital ou o acesso a eles, nomeadamente o software enquanto serviço, de que são exemplo o compartilhamento de arquivos de vídeo e áudio e outro tipo de hospedagem de arquivos, o processamento de texto ou jogos disponibilizados no ambiente de computação em nuvem, bem como as redes sociais [10].

Buscando-se inspiração da Diretiva 2011/83/UE, esses produtos e serviços não são passíveis de direito de arrependimento pelo consumidor [11], por não permitirem o status quo ante — não é possível restituí-los —, e diferem dos seguintes: conteúdos digitais fornecidos num suporte material, tais como DVD, CD, pen drive ou chave USB e o cartão de memória, bem como do próprio suporte material, desde que funcione exclusivamente como meio de disponibilização de conteúdo digital [12].

Os produtos e serviços digitais podem ser transmitidos — copiados, reproduzidos, disponibilizados e acessados — exclusivamente por meios eletrônicos, como a internet [13]. A sua devolução por parte do consumidor que se arrepende da contratação fica prejudicada, pois não se pode devolver ao fornecedor produtos ou serviços que já foram prestados.

É necessário dispor sobre o direito de arrependimento do consumidor de forma mais clara e adequada ao uso da tecnologia. Quando a contratação por meio eletrônico tiver por objeto bem imaterial e incorpóreo, em que é possível ao consumidor copiar, reproduzir ou acessar o conteúdo digital — e em que é impossível devolver o bem ou se desfazer do serviço já prestado —, não deve ser permitido ao consumidor se arrepender do contrato, injustificadamente, e receber a restituição da totalidade do valor pago.

A Diretiva 2011/83/EU impôs deveres de informar específicos ao meio e ao conteúdo digital: determinou que o fornecedor, antes de permitir que o consumidor descarregue e/ou faça a transmissão do conteúdo digital para seu computador, informe o consumidor sobre as especificidades técnicas dos conteúdos digitais. O objetivo é munir o consumidor de subsídios para que não adquira um produto ou um serviço que não seja compatível com o seu computador — e por isso o programa não venha a rodar —, e o consumidor não possa se arrepender de ter adquirido um produto ou um serviço do qual não possa usufruir [14].

A Diretiva 2011/83/UE admite certas exceções ao exercício do direito de arrependimento dos consumidores na era digital [15] que devem servir de inspiração para o reforço do direito de arrependimento do consumidor brasileiro nos contratos celebrados por meios eletrônicos. Sustenta-se que o ordenamento jurídico brasileiro adote algumas exceções ao direito de arrependimento do consumidor, a serem incluídas no PL 3.514/2015, com o objetivo de assegurar o exercício desse direito, quando a situação fática permitir. Essa sugestão de alteração do artigo 49 do CDC visa a um reforço do direito de arrependimento do consumidor, no sentido de que o fornecedor respeite e resguarde o direito de reflexão do consumidor quando este quiser e puder exercer, sem que o fornecedor se sinta lesado. Objetiva-se evitar a banalização do direito de arrependimento na sociedade de consumo massificada pelos meios de comunicação a distância e eletrônicos, de maneira que não seja mais respeitado pela sociedade.

O PL 3.514/2015, ao propor nova redação ao artigo 49 do CDC, não enfrentou a questão do fornecimento de conteúdos e serviços digitais. As situações previstas nas Diretivas 2019/770, 2019/771 [16] e 2011/83/UE podem servir de inspiração para o legislador brasileiro. Por isso, é indispensável a inclusão de alguns dispositivos acerca do consumo de conteúdos e serviços digitais no PL 3.514/2015, para que o CDC disponha de norma que discipline o direito de arrependimento nos contratos na era digital, notadamente dispondo sobre a não aplicação desse direito no caso de compra de determinados produtos e serviços, sob pena enfraquecer ou fragilizar essa garantia, com o argumento de que o consumidor está abusando de seu direito. É preciso pensar no exercício do direito de arrependimento do consumidor como um direito potestativo e irrenunciável, evitando casuísmos [17].

Sustenta-se que o direito de arrependimento não pode ser exercido, desde que previamente informado pelo fornecedor ao consumidor, em determinados casos: a) contrato de prestação de serviço, depois de o serviço ter sido integralmente prestado, caso a execução tenha iniciado com o consentimento expresso do consumidor; b) fornecimento de produto fabricado segundo a especificação do consumidor ou claramente personalizado, desde que a restrição ao direito de arrependimento esteja destacada no momento da contratação; c) fornecimento de disco, gravações de áudio ou de vídeo seladas, ou de programa informático selado de que tenha sido retirado o selo após a entrega ou que possam ser baixados (download) por meio eletrônico de acesso à internet; d) fornecimento de conteúdo digital, tais como arquivo de computador, gravações de áudio e vídeo, programa informático, que não sejam fornecidos em um suporte material e, sim, eletronicamente (streaming), se a execução tiver início com o consentimento expresso do consumidor, já que o conteúdo pode ser baixado (download) e/ou reproduzido imediatamente para uso permanente.

O legislador brasileiro precisa incluir alguns dispositivos sobre os contratos de fornecimento de conteúdos digitais ou à prestação de serviços digitais no PL 3.514/2015, com o objetivo de reforçar a proteção do consumidor no meio eletrônico e estabelecer o equilíbrio entre o elevado nível de proteção do consumidor e a promoção da competitividade entre fornecedores. Esses “serviços no mundo digital são múltiplos e complexos, e hoje há serviços conectados ou incluídos nos chamados ‘produtos digitais’ ou ‘inteligentes'” [18].

 

Referências bibliográficas
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil: da extinção do contrato: artigos 472 a 480. Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2.

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UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32011L0083&from=en . Acesso em: 26 jul. 2021.

 

[1] STIGLITZ, Gabriel. O direito contratual e a proteção jurídica do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 189, mar. 1992.

[2] CALAIS-AULOY, Jean. Venda a domicílio e venda à distância no direito francês. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 1, n. 28, p. 65, 1992.

[3] Ver KLEE, Antonia Espíndola Longoni. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[4] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.514/2015.

[5] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. “Serviços simbióticos” do consumo digital e o PL 3.514/2015 de atualização do CDC. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 132, p. 91-118, nov./dez. 2020.

[6] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. “Serviços simbióticos” […].

[7] Considerando (5). UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2019/770.

[8] Sobre a confiança no meio eletrônico, ver o belíssimo livro de MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

[9] Artigo 2º. UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2019/770.

[10] Exemplos retirados do Considerando (19). UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2019/770.

[11] Ao comentar o artigo 473 do CC/2002, Aguiar Júnior aponta para uma situação não regulada pelo CDC: é o caso do contrato de fornecimento de serviço, “quando a prestação do fornecedor, por já ter sido feita a benefício do consumidor, é irrestituível”. O autor defende a não aplicação do direito de arrependimento do consumidor, a esse caso. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil: da extinção do contrato: artigos 472 a 480. Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2, p. 297.

[12] Exemplos retirados do Considerando (20). UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2019/770.

[13] PARENTONI, Leonardo Netto. Direito de arrependimento na Internet e estabelecimento virtual. Repertório IOB de jurisprudência: civil, processual, penal e comercial, São Paulo, n. 16, p. 514, 2. quinz. ago. 2006.

[14] Considerando (19) da Diretiva 2011/83/EU.

[15] Considerando (49) da Diretiva 2011/83/EU.

[16] UNIÃO EUROPEIA. Diretiva (UE) 2019/771.

[17] Um exemplo de casuísmo é a inclusão do artigo 49-A no texto do PL 3.514/2015, relativo à compra e venda de passagens aéreas. Outro casuísmo estava presente no artigo 8º da Lei n. 14.010/2020, não mais em vigor. BRASIL. Lei n. 14.010, de 10 de junho de 2020.

[18] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. “Serviços simbióticos” […].