Por Rebeca Drummond de Andrade Müller e Anna Luísa Mota Guimarães

Duas expressões, ambas de forte presença na rotina dos cidadãos brasileiros, nunca estiveram tão interligadas: tributação e carnaval, imortalizadas pelas lições atemporais de Alfredo Augusto Becker, que descreve em seu livro “Carnaval Tributário” a irracionalidade do sistema tributário brasileiro e seus efeitos danosos sobre a vida das pessoas. O termo, cunhado entre as décadas de 1980 e 1990, permanece mais que atual, o que leva à conclusão de que o nosso sistema tributário urge por uma boa reforma — seja pelo imbricado curso por onde caminham as leis e os atos normativos, seja pela rotina de formação da jurisprudência e dos precedentes.

A jornada conta, ainda, com o nosso modelo de federalismo fiscal e a corrida por uma mínima autonomia financeira e tributária “que permita aos entes federados exercer suas competências próprias de forma autônoma” [1]. De competência, portanto, dos estados e protagonista de discussões como a chamada “guerra fiscal”, o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), previsto pelo inciso II do artigo 155 da CF, é um dos personagens centrais desse cenário envolto pela arrecadação e pela consecução das atividades estatais. Nos bastidores, se o ICMS é o protagonista, o contribuinte se torna o telespectador, aguardando as cenas dos próximos capítulos.

Um dos casos emblemáticos, que bem demonstra a conjuntura descrita, é a dinâmica da cobrança do imposto sobre as operações interestaduais de fornecimento de energia elétrica para emprego em processo de industrialização, apreciado em 2020 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral (Tema nº 689), no RE nº 748.543. Qual estado teria a competência para, nessa hipótese, cobrar o ICMS: o de origem ou o de destino?

A discussão é relevante tanto para os estados como para as empresas que atuam no setor de energia elétrica ou são grandes consumidoras desse bem. Segundo Lucas Bevilacqua e Leonardo Buissa [2], doutrina trazida pelo ministro Edson Fachin em seu voto, se estima que a arrecadação do imposto apenas nas transações de energia elétrica corresponde a aproximadamente 10% da arrecadação tributária total dos estados.

Para a análise que faremos, alguns dos aspectos sobre o ICMS vem à tona. De antemão, há a compreensão de que a Constituição atribuiu à energia elétrica, para fins de tributação, a qualidade de mercadoria. Também se é lembrado que ele é um imposto real e indireto, uma vez que a sua incidência não está atrelada à capacidade contributiva, mas sim ao bem em si, e o seu ônus é, como regra, transmitido ao consumidor final. O ICMS pode, também, assumir o caráter seletivo, atrelando-se à essencialidade do produto.

São balizas trazidas pela Constituição e que devem ser observadas pelos estados e pelo Distrito Federal [3]. No caso da seletividade, o seu conceito está ligado à possibilidade de se fixar diferentes alíquotas para serviços mais importantes ou essenciais. Do outro lado, no âmbito do legislador ordinário, estão as isenções como a que afasta o imposto quando a operação tiver como destino a industrialização ou a comercialização de energia elétrica (artigo 3º, II, da LC nº 87/96).

O ponto crucial para a presente análise traz a leitura do artigo 155, §2º, X, “b”, da Constituição, cujo comando afasta a tributação do ICMS sobre operações que destinem energia elétrica a outros estados. O passar dos olhos sobre a redação nos levaria imediatamente a crer em uma regra de imunidade, todavia, sedimentou-se, no campo jurisprudencial, a compreensão de que o constituinte buscou proteger os entes, motivo pelo qual se estaria diante de regra protetiva voltada ao federalismo fiscal — e não ao contribuinte. [4]

Com essas considerações iniciais, nos voltamos para a análise que propomos acerca da tese fixada em sede de repercussão geral, pelo STF, no citado RE 748.543, de relatoria do ministro Marco Aurélio.

A nossa Constituição, como se se antecipasse às desigualdades intrínsecas ao solo brasileiro, viu na cobrança do ICMS um gatilho para a quebra do pacto federativo e ao desequilíbrio da relação entre os entes.

É assim que, diante da capacidade de alguns estados concentrarem a produção de petróleo e demais recursos utilizados na geração de energia, ela vedou a cobrança do imposto, pelo estado de origem, sobre as operações que destinassem referidos bens a outras partes da federação, ou seja, para os estados de destino. Isso ocorre sobretudo em razão da premissa de que os entes produtores, a partir dos quais a energia é remetida, já contam com a participação no resultado daquela exploração (artigo 20, §1º, da CF).

A tese divergente e vencedora, levantada pelo ministro Alexandre de Moraes, partiu justamente desse raciocínio. Para o ministro, a cobrança de ICMS seria possível apenas pelo estado destinatário da energia para fins de industrialização, ou seja, a alínea “b” do inciso X do §2º do artigo 155 da CF/1988 proibiria a cobrança do imposto apenas pelo estado de origem, em uma clara opção por beneficiar o estado de destino e reverenciar o federalismo fiscal. Resgatou-se os preceitos firmados pela corte no ano 2000 por meio do RE nº 198.088/SP.

A partir da leitura conjunta realizada com base no artigo 155, §2º, X, “b”, e do artigo 20, §1º, ambos da CF, o foco da dinâmica tributária se voltou, assim, à proteção dos entes estaduais, e não à concessão de um tratamento favorecido ao setor produtivo. A hermenêutica lançada torna o caso ainda mais interessante, pois, na rotina de formação de precedentes tributários, acostumamo-nos a ver o diálogo que tangencia os interesses dos contribuintes e possíveis imunidades ou isenções.

O ministro Alexandre de Moraes considerou, ainda, o disposto no §9º do artigo 34 do ADCT [5], o qual, em leitura conjunta com os demais dispositivos, demonstraria a intenção do constituinte sobre o tema ao autorizar a tributação integral do ICMS-Energia elétrica pelo estado destinatário.

Segundo a ratio do voto vencedor, apesar de se tratar de disposição transitória, não faria sentido a sua edição, caso não fosse a vontade do constituinte em centralizar a cobrança do ICMS nas mãos do estado de destino.

Outro ponto de maior atenção veio com a proposta, igualmente levantada pelo ministro Alexandre de Moraes, quanto à declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º, §1º, III, e 3º, III, da Lei Complementar 87/1996. Os dispositivos ofertam uma isenção, já que limitam a tributação, ao manter a incidência do ICMS nos casos em que a operação interestadual relativa à energia elétrica não se destinar à industrialização ou à comercialização.

Em sua visão, a Lei Complementar reduziu o alcance da Constituição Federal ao instituir tal limitação, o que colocaria os estados destinatários em uma situação de desvantagem em relação aos estados produtores. Assim, ainda que não se tratasse de processo industrial ou comercial, a incidência deveria ser afastada para abarcar toda a operação. O entendimento não foi abraçado pela maioria da corte, enfrentando divergências dos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso.

O ministro Gilmar Mendes, chancelando o resgate da jurisprudência do STF no sentido de que em questão não estaria hipótese de imunidade, entendeu que o legislador, tendo margem para tanto, foi o ator responsável por eleger algumas das operações para afastar a tributação. Já o ministro Roberto Barroso explicou que a constitucionalidade dessas normas não era objeto do recurso, o que impediria o seu reconhecimento no caso.

O debate do mérito contou com a interpretação vencida do relator, ministro Marco Aurélio. Para ele, o artigo 155, §2º, X, “b”, da CF trata de imunidade abrangendo a entrada e a saída da mercadoria, uma vez que, à exceção daquela vinda do exterior, existiria apenas uma única transação.

Caso não fosse adotado esse pensamento, segundo o ministro, se teria uma transformação do ICMS em um imposto de “importação”, criando uma divisão na ideia de circulação de mercadorias, a qual seria destrinchada em duas etapas inexistentes: uma entrada e uma saída. Em verdade, a operação seria única e o próprio nome do imposto revelaria isso, de forma que, existindo imunidade, ela claramente abrangeria toda a operação e não apenas parte dela.

Assim, o Tema 689 da repercussão geral foi fixado da seguinte forma: “Segundo o artigo 155, §2º, X, b, da CF/1988, cabe ao Estado de destino, em sua totalidade, o ICMS sobre a operação interestadual de fornecimento de energia elétrica a consumidor final, para emprego em processo de industrialização, não podendo o Estado de origem cobrar o referido imposto”.

A partir da tese formada, alguns apontamentos surgem. Ela faz, à luz da CF, menção expressa à energia “para emprego em processo de industrialização”, nada obstante o texto constitucional não se valha desse termo. Quem o utiliza é a Lei Kandir, e justamente nos dispositivos trazidos pelo ministro Alexandre de Moraes (artigo 2º, §1º, III e artigo 3º, III) na parte em que não foi acompanhada pelos demais ministros, como bem apontou Fernando Scaff ao lançar o questionamento se teria havido uma possível invasão de competência do STJ [6].

Trata-se de uma situação paradoxal, pois ao mesmo tempo em que não foi analisada a constitucionalidade dos dispositivos da LC 87/96, assentiu-se com a tese que abarca restrição não prevista pela Constituição.

A verdade é que a CF apenas tratou da hipótese de tributação do ICMS, sobre energia elétrica nas remessas interestaduais, para prever que a competência seria a do estado de destino. Nada mais. A Lei Kandir foi que avançou para acrescentar a tributação, sob o regime de substituição tributária, quando a mercadoria fosse destinada ao consumidor final, ou seja, fora do escopo do uso da mercadoria para comercialização ou industrialização.

Por outro lado, é possível que a ênfase dada ao termo indique que não será possível interpretar a utilização da energia elétrica para a consecução da atividade empresarial como um insumo no processo de industrialização, mas, sim, como uma operação de venda ao consumidor final. Ainda que assim seja, trata-se de lançar mão de afirmativa que não reflete a realidade jurídica, a repercussão econômica e a razão de ser legislativa, o que inevitavelmente esbarraria novamente na necessidade de pronunciamento do STJ.

De acordo com o inciso IV do parágrafo único do artigo 4º da LC 87/96, sequer a pessoa física ou jurídica que adquira, entre outros, energia elétrica não destinada à comercialização ou à industrialização é tratada como consumidor final, mas sim como contribuinte.

Para além disso, quando se utiliza a energia como insumo do processo industrial, a mercadoria é não só imprescindível ao produto final como incorporada aos seus custos, sendo aquele tributado pelo ICMS quando da saída, sem a possibilidade de creditamento, já que a entrada não fora tributada. Nesses casos, também não ocorreria o encerramento do processo produtivo a caracterizar o status de consumidor final.

Seja como for, o precedente formado é emblemático por sua importância e pelas ramificações que dele decorrem. Representa, ele, impacto expressivo para os estados ao traduzir os embates em torno do federalismo fiscal, estando, na outra ponta, as empresas que necessitam de alta potência de energia elétrica disponível para dar vazão ao seu processo industrial.

De um jeito ou de outro, é preciso que os contribuintes permaneçam sempre atentos às aplicações automáticas do Tema nº 689 da repercussão geral aos seus casos concretos, pois, sem margem para dúvidas, é necessária a análise casuística acerca da utilização da energia elétrica, aliando-a aos contornos das razões de decidir do STF. Até que venha a sonhada e boa reforma tributária, cuidados adicionais são necessários e sinônimos de cautela em meio ao eterno carnaval antevisto por Becker.

 

[1] ARABI, Abhner Youssif Mota. Federalismo Brasileiro: Perspectivas descentralizadoras. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 79.

[2] BEVILACQUA, Lucas e BUISSA, Leonardo. Seletividade, justiça fiscal e neutralidade concorrencial: o ICMS sobre energia elétrica nos Tribunais Superiores. In: Interesse público IP, Belo Horizonte, ano 19, n.104, p.121-141, jul/ago, 2017, p.131.

[3] Em relação à não cumulatividade, Marcus Abraham nos relembra que deve ser compensado o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestações de serviços com o já cobrado nas etapas anteriores pelo mesmo ou outro Estado. Cf. ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Editora Forense, 2019, pg. 345.

[4] Conforme registrou o Ministro Ilmar Galvão, “não se está, no caso, diante de imunidade propriamente dita (…) Não beneficia, portanto, o consumidor, mas o Estado de destino do produto, ao qual caberá todo o tributo sobre ele incidente, até a operação final”. Cf. RE nº 198.088/SP, Rel. Min, Ilmar Galvão, julgado em 10/02/2000.

[5] “§9º. Até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão as responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidente sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, calculado o imposto sobre o preço então praticado na operação final e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação”.