A declaração de constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020) permitirá a ampliação do acesso à água e a esgotos pela população brasileira. Por outro lado, ameaça empresas estaduais de saneamento. É o que dizem especialistas ouvidos pela ConJur.

Seguindo o voto do relator, ministro Luiz Fux, o Plenário do Supremo, por sete votos a três, negou nesta quinta-feira (2/12) quatro ações diretas de inconstitucionalidade que questionam dispositivos do Novo Marco Legal do Saneamento Básico.

Os ministros entenderam que questões referentes ao saneamento básico são intrinsecamente de interesse local e de competência dos municípios. Mas isso não impede a atuação conjunta e integrada entre todos os entes da federação, pois a eficiência de tal serviço é de interesse dos estados e da União, já que ajuda a preservar a saúde das pessoas e o meio ambiente e a promover desenvolvimento econômico sustentável.

O ex-advogado-geral da União Fábio Medina Osório afirmou que a decisão do Supremo garantiu a segurança jurídica necessária para as privatizações na área de saneamento básico e protegeu os direitos dos brasileiros.

“O Novo Marco Legal do Saneamento Básico significa uma agenda de desenvolvimento para o Brasil, que trará desenvolvimento ambiental sustentável para toda a população. O STF julgou de forma alinhada com os direitos fundamentais de toda a população brasileira”.

O presidente da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Sustentabilidade do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Leandro Mello Frota, disse que a decisão do STF ajuda a superar o atraso brasileiro no saneamento básico.

“A falta de acesso à água e ao esgotamento sanitário está relacionada à extrema pobreza. A pobreza é o vilipêndio mais cruel dos direitos humanos. A aprovação da Lei 14.026/2020 veio para tentar mudar essa realidade. A Suprema Corte está de parabéns por afastar a tentativa de retrocesso ambiental e humanitário”.

Renata Franco, advogada especialista em Direito Ambiental e Regulatório, afirmou que, dos dez pontos discutidos, quatro chamam mais atenção: (i) autonomia dos titulares dos serviços; (ii) modicidade tarifária e subsídio cruzado; (iii) regulação; e (iv) concessões ou contratos de programa para a prestação dos serviços.

“Sobre a autonomia dos titulares dos serviços, essa questão está intimamente relacionada ao conceito de ‘interesse local’. Em tese, estados e municípios devem tomar as decisões conjuntas sobre projetos de saneamento. Esse conceito, inclusive, foi aprofundado em recente decisão nas ADIs 6.573 e 6.911 e na ADPF 863. Portanto, já existe uma solução para agrupamentos de municípios (e estado) delineada pelo STF em julgamentos passados, sendo muito difícil sob esse aspecto a lei ser reputada como inconstitucional”, explicou, ressaltando que, para os três outros temas, ainda não há uma jurisprudência única, pacificada do Supremo.

Segundo Renata, o mais polêmico dos temas é o fato de a lei ter acabado com a possibilidade de empresas estatais poderem assumir a prestação dos serviços de saneamento sem participar de licitações.

“A prestação de serviços por meio de estatais é bem-vinda e, em alguns casos, até desejada. Mas essa participação somente se justifica quando o mercado ainda não desenvolveu concorrência, amadurecimento e competição suficiente. Essa realidade de 20 anos atrás já não se justifica e a iniciativa privada passou a ter o interesse em correr os riscos associados à prestação dos serviços de água e esgoto. Assim, o marco do saneamento proporciona o ambiente de livre competição, e o STF deve fazer valer o artigo 173 da Constituição Federal”, opinou.

Empresas estaduais
Para Rubens Naves, sócio fundador do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados, professor aposentado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor do livro “Saneamento para todos”, a decisão do Supremo “impõe severos desafios para as empresas estaduais de saneamento prosseguirem nas suas atividades”.

Isso porque tais companhias deverão adaptar os contratos de programa em vigor até 2022 para atender às metas de universalização para 2033, ou seja, de forma a promover o atendimento de 100% de água tratada e 90% de esgotamento sanitário.

“Além disso, as empresas públicas de saneamento, para expansão dos seus serviços por meio de mecanismos de economias de escala, deverão submeter-se a processos licitatórios para buscarem novas concessões, competindo com as empresas privadas do setor. De igual forma, deverão se submeter às novas normas regulatórias determinadas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico”, destacou o advogado, ressaltando a possibilidade de municípios atuarem diretamente na promoção do saneamento básico por meio de autarquias intermunicipais criadas especialmente para esse fim.

Na visão de Naves, algumas das empresas estaduais terão condições de atender essas determinações legais, como o caso da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e outras. Porém, disse o professor aposentado, a grande maioria encontrará dificuldades na obtenção de financiamentos para o enfrentamento de questões ligadas à expansão das redes, estações de tratamento e novas tecnologias do setor.

Rubens Naves ainda ressaltou que foi reconhecida a constitucionalidade do novo modelo consensual de bloco de referência, bem como o modelo imposto por lei para a criação de unidade regional de saneamento básico.

Nesse sentido, ele elogiou a promulgação da Lei estadual 17.383/2021, que instituiu quatro unidades regionais de saneamento básico em São Paulo: Sudeste, Centro, Leste e Norte.

Alexandre Aragão, professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, declarou que não apenas o Novo Marco Legal do Saneamento Básico, mas principalmente os decretos que vêm regulamentando o novo diploma, têm tido pouco cuidado com a segurança jurídica das empresas estaduais de saneamento, que, como qualquer companhia, também têm proteção constitucional.

“Dá até a impressão até de estar havendo um certo bullying com as empresas estaduais, criando-se um conjunto de artifícios para, na prática, as retirarem do mercado e da atividade”, opinou Aragão.

O professor da Uerj também afirmou que não dá para partir do pressuposto de que a nova lei, por priorizar a prestação privada dos serviços de saneamento, irá melhorar as condições das pessoas que atualmente não têm acesso ao serviço.

“Basta vermos os exemplos que temos no país todo de concessões há décadas celebradas com empresas privadas dos serviços de saneamento, que estão muito longe de serem sucessos da universalização”, afirmou.