Por Ricardo Calcini e Mariana Leal

Segundo pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Startups (Abstartups), desde meados de 2020 o Brasil conta com mais de 12,7 mil startups [1]. Esse recente número representa 20 vezes mais negócios inovadores do que o que foi apurado no ano de 2011, em que a associação passou a divulgar as estatísticas.

Para especialistas, o nosso país é considerado um grande centro de negócios na internet. O fato de ocuparmos uma posição relevante a nível internacional (top 10) reforça a tendência de crescimento nos próximos anos.

Sabemos que todo instituto novo que ganha destaque na sociedade, afetando diversas formas de relações, é pauta do direito e, consequentemente, do âmbito legislativo.

Com as startups não seria diferente. Em 2019 foi promulgada a Lei Complementar 167, que as define como:

“(…) Empresas de caráter inovador que visa a aperfeiçoar sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de serviços ou de produtos, os quais, quando já existentes, caracterizam startups de natureza incremental, ou, quando relacionados à criação de algo totalmente novo, caracterizam startups de natureza disruptiva”.

Prossegue a citada norma com a descrição das características das startups:

“(…) Caracterizam-se por desenvolver suas inovações em condições de incerteza que requerem experimentos e validações constantes, inclusive mediante comercialização experimental provisória, antes de procederem à comercialização plena e à obtenção de receita”.

Mais surpreendente foi a célere aprovação pelo Senado Federal, no último dia 24, por unanimidade, do Projeto de Lei Complementar nº 146/2019, que visa a instituir o Marco Legal das Startups [2].

Embora certamente tenham suas particularidades, formalmente as startups são verdadeiras empresas, sendo seus atos constitutivos e negócios regidos pelo Código Civil e legislações correlacionadas ao tema.

Todavia, diferentemente das empresas tradicionais, que buscam desenvolvimento a partir de empréstimos, as startups encontram suas fontes de recursos por meio dos chamados angel investors ou companhias de capital de risco.

O site Anjos do Brasil [3] assim os decifra:

“Um empresário/empreendedor ou executivo que já trilhou uma carreira de sucesso, acumulando recursos suficientes para alocar uma parte (normalmente entre 5% a 10% do seu patrimônio) para investir em novas empresas, bem como aplicar sua experiência apoiando a empresa. Importante observar que diferentemente que muitos imaginam o Investidor-Anjo normalmente não é detentor de grandes fortunas, pois o investimento-anjo para estes seria muito pequeno para ser administrado”.

O que também as singulariza, de modo abrangente, é o fato de que os (as) investidores (as) costumam possuir papel muito mais relevante na efetiva tomada de decisões, imprimindo, inclusive, suas personalidades aos negócios, por estarem envolvidos (as) pessoalmente em investimentos, os quais se configuram como de alto risco.

Visando a compensar essa incerteza e estimular a criação das startups no Brasil, o governo buscou apresentar algumas facilidades, especialmente no que tange a atenuação da burocracia em determinados procedimentos.

Ainda que sejam consideradas pelos experts como ineficazes para a real promoção de investimentos, enfatizamos, exemplificativamente, a Resolução nº 55/2020, que dispõe sobre a abertura, alteração e fechamento de empresas sob o regime do sistema simplificado Inova Simples, assim como questões que envolvam o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) para fins de registro de marcas e patentes.

Abordamos até aqui, brevemente, as atividades dos Poderes Legislativo e Executivo sobre as startups, mas como o Judiciário trabalhista vem encarando as particularidades dessa nova forma de negócios, especialmente no tocante aos que fornecem sua força de trabalho?

O rápido trâmite este ano de 2021 perante o Legislativo acerca do texto do Marco Legal das Startups nos dá um panorama sobre o assunto.

Do estudo da redação prévia da mencionada lei, verificamos que será conferido tratamento bastante similar ao já aplicado pela Justiça do Trabalho atualmente no julgamento de casos concretos que recebe.

Dessa forma, consideramos ser especialmente significativa a análise das conclusões dos (as) magistrados (as) do trabalho nessa seara das startups, embora ainda sejam esparsos os processos que chegaram às instâncias superiores para julgamento, dado, justamente, o ineditismo da matéria.

Nesse sentido, cita-se a juíza da 46ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, em julgamento ocorrido em 2019 [4]:

Essa é uma das matérias mais controvertidas, em que o vínculo de emprego nem sempre se caracteriza realmente. Não há uma única solução, devendo ser analisado caso a caso, devendo o juiz verificar os elementos fáticos da relação mantida entre as partes”.

Em 2020, a sentença prolatada pela magistrada da 45ª Vara do Trabalho de São Paulo, em processo no qual uma startup figura como reclamada [5], é assertiva quanto à menção dos importantes artigos 2º e 3º da CLT. Vejamos:

Quanto à existência de relação de emprego, essa se define pelos critérios estabelecidos nos artigos 2º e 3º da CLT, o primeiro que define o empregador como a empresa que assume os riscos da atividade econômica, admitindo, assalariando e dirigindo a prestação do trabalho, e o segundo que caracteriza a empregada como a pessoa física que presta serviços de caráter não eventual a empregador, sob sua dependência e mediante salário. A relação de emprego, portanto, existe de fato quando na relação jurídica havida entre as partes se encontram presentes esses requisitos, quais sejam, a não eventualidade, a subordinação, a pessoalidade, o assalariamento e a assunção pela empregadora dos riscos da atividade econômica”.

Ganha destaque o acórdão proferido em 2ª instância pelo Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo [6], ao constar de forma descritiva alguns exemplos de atividades desempenhadas na startup reclamada, mas que facilmente podem ser vislumbrados em outras empresas com similar configuração:

“Denota-se que a reclamante foi contratada para exercer atividade que se inseria na atividade fim da reclamada. O contrato firmado tinha por objeto a prestação de serviços nas áreas comercial, marketing e relacionamento com clientes, atividades vitais para o fomento da empresa, principalmente por se tratar de uma “startup” cuja criação visa oferecer negócio inovador ou modelo de negócio diferenciado. (…) O depoimento pessoal da reclamada comprova a contratação mediante pagamento mensal de quantia fixa, auxílio alimentação e auxílio de estacionamento, que a reclamante prestava serviços de segunda a sexta, possuindo local para trabalho na empresa, assim como e-mail de domínio da reclamada, reportando-se diretamente aos diretores da empresa, Maurício e Vitor, trabalhando, assim, com objetivo de conseguir parcerias junto às clínicas, em favor da reclamada. O depoimento testemunhal também evidencia ter a reclamante montado equipe de credenciamento, trabalhando de forma exclusiva para a reclamada. Os e-mails juntados às fls. 106/107 comprovam tal assertiva, pois referem-se a orientações passadas pela reclamante à “equipe”, inclusive com marcação de reuniões semanais e com relação à forma de recebimento dos clientes. Correta, portanto, a r. sentença ao reconhecer o vínculo de emprego entre as partes”.

O certo é que nem mesmo a reforma trabalhista, que alterou mais de cem dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), foi capaz de desconsiderar juridicamente como empregado (a) toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário (artigo 3º, CLT).

Lembremos, ainda, que o supracitado artigo costuma ser, de forma adequada, conjugado com dispositivo igualmente não modificado pela reforma, qual seja, o 9º, que assim dispõe: Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.

Mesmo com eventuais reformas pelo Congresso, esse tipo de norma raramente será alterada, afinal, os direitos trabalhistas são resultados de um longo e gradual processo de reivindicações dos trabalhadores(as) de todo o mundo. Ademais, o caput do artigo 7º da CF/88 prevê o princípio da vedação ao retrocesso quanto aos direitos sociais trabalhistas.

Nesse contexto, vale a reflexão do procurador-Geral do Trabalho, Ronaldo C. Fleury, sobre a insistente tentativa de flexibilização do ramo justrabalhista, sob o viés de interesses do próprio capital:

“(…) A diminuição de direitos trabalhistas conduz ao encolhimento da renda do trabalhador e, portanto, à diminuição da capacidade aquisitiva dos consumidores (ainda mais com o mercado de crédito pessoal já proibitivamente caro)” [7].

Dessarte, a ausência de garantias trabalhistas tradicionais, devidamente amparadas pelo ordenamento jurídico, acaba por reduzir a capacidade aquisitiva dos (as) empregados (as), os quais são, ao final, os (as) consumidores (as) dos produtos e serviços, o que prejudica a expectativa dos próprios agentes econômicos.

O fato é que as incertezas que pairam sobre as startups estão atreladas ao princípio da alteridade, isto é, aos riscos de insucesso próprio do negócio, que ficam a cargo do empregador, e não do empregado (artigo 2º, CLT).

Nesse cerne, entendemos que dificilmente em juízo será possível o afastamento de direitos trabalhistas e previdenciários decorrentes de uma típica relação de emprego.

Em consonância com o exposto, decidiu a juíza da 54ª Vara do Trabalho de São Paulo, em novembro de 2020[8] que:

“(…) Na mera alegação de que é uma startup que estava começando no mercado de micromobilidade urbana e que desde então não apresentou lucros ou resultados positivos, como consta da defesa, não é prova de isenção para eximir-se de pagamento (…)”.

Concluímos, assim, que o princípio do contrato-realidade vigorará no Judiciário trabalhista, pois o fato de serem os(as) empregados(as) contratados(as) como meros(as) prestadores de serviços (PJs) para desenvolverem seus serviços em startups (as quais, como vimos, são verdadeiras empresas), não é capaz, por si só, de afastar o reconhecimento do liame de emprego e suas consequências jurídicas.

Por conseguinte, o projeto de lei recentemente aprovado pelo Senado se apresenta em consonância com o que já vem, em regra, sendo decidido pela Justiça do Trabalho.

 

[1] Fonte: https://abstartups.com.br/crescimento-das-startups/#:~:text=Atualmente%2C%20j%C3%A1%20estamos%20com%2012.800,26%2C75%25%20por%20ano, acesso em 24 de fevereiro de 2021.

[2] Há importante PL apensado, de nº 249/2020, atualmente perante a Câmara dos Deputados.

[3] Referência utilizada por Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos nº 1074847-88.2016.8.26.0100, Relator: Ricardo Negrão, Data de Julgamento: 02/02/2021, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.

[4] Autos nº 01011370520185010046, TRT 1ª Região, sentença prolatada na data de 13/03/2019.

[5] Autos nº 1001498-36.2019.5.02.0045, TRT 2ª Região, sentença prolatada aos 15/12/2020.

[6] Autos 10019079020175020074, Relator: ORLANDO APUENE BERTAO, 16ª Turma Data de Publicação: 18/06/2019.

[7] Prefácio da obra “Reforma Trabalhista na visão dos Procuradores do Trabalho”, 2018, Editora JusPodivm, p. 21.

[8] Autos nº 1000734-86.2020.5.02.0054, Reclamada Yellow Ltda.